O direito à cidade depende de reforma urbana
que democratize o uso e a ocupação do solo.
[30/12/2013]
O caos urbano é evidente
nas cidades brasileiras: constantes engarrafamentos, moradias irregulares,
especulação imobiliária, serviços públicos precários. Investir em políticas
públicas é um avanço, mas não é o suficiente, na opinião da urbanista e autora
do livro O Impasse da Política Urbana no Brasil, Ermínia Maricato. Para ela, o
direito à cidade depende de uma política urbana de estruturação, que
democratize, principalmente, o uso e a ocupação do solo.
Professora nas
Faculdades de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e da
Unicamp, e integrante do Conselho da Cidade de São Paulo, ela há alguns anos
alerta para o fato de nossas cidades serem verdadeiras bombas-relógio.
Nessa entrevista, a
especialista fala sobre o direito à cidade, política urbana, estresse nas
grandes cidades, impactos dos megaeventos e a falta de planejamento na condução
de uma reforma urbana que priorize toda a população.
Rede Mobilizadores - O
que é o direito à cidade? O que ele assegura e quais as principais violações a
esse direito nas cidades brasileiras?
R.: Existe uma resposta acadêmica e também uma resposta de luta social
para essa questão. O direito à cidade é um conceito francês que diz que seus
moradores devem ter o direito à cidade enquanto festa urbana, ou seja, a cidade
que expressa diversidade e que utiliza seus espaços mais valorizados para
oferecer lazer, cultura e serviços à população. Acontece que a ocupação desse
chamado espaço urbano é alvo de uma eterna luta de classes dentro das cidades.
Historicamente, as populações menos favorecidas ocupam as periferias das
cidades, onde o direito à cidade é mais negligenciado, pois falta, na maior
parte das vezes, infraestrutura e urbanização.
Aqui no Brasil, a
população trabalhadora não consegue entrar na cidade formal. Ela está na
periferia, é caracterizada por pessoas excluídas que, ao mesmo tempo, produzem
pelas próprias mãos a sua cidade, muitas vezes ilegal, sem transporte público,
sem os equipamentos e serviços sociais essenciais, como escolas, museus,
universidades, saneamento, iluminação pública.
É uma periferia de
tradição escravista que não tem direito aos benefícios urbanos de uma
coletividade e que é jogada para áreas ambientalmente frágeis, como áreas de
proteção de mananciais, encostas. Esta população não cabe na cidade, ela não
tem direito a uma cidade urbanizada e qualificada.
Só para se ter uma ideia
da dimensão social deste fato, em Belém, no Pará, mais de 50% da população
moram na ilegalidade, em Recife (PE), são cerca de 40%, e na Baixada
Fluminense, 80% da população não têm acesso a esgotamento sanitário.
Rede Mobilizadores - Recentemente,
a senhora afirmou que nossas cidades são “verdadeiras bombas-relógio”. O que
quis dizer com isso?
R.: Em junho recente, com as manifestações que explodiram no país
inteiro, pudemos ter uma noção de que alguma coisa está fora da ordem. O
estopim começou por causa do transporte público, de péssima qualidade e sem
nenhum tipo de planejamento na maior parte das cidades brasileiras. Mas o
desgoverno que estamos vivenciando está em todas as esferas. Quem manda é o
capital especulativo, é o mercado imobiliário, as empreiteiras, e a indústria
automobilística. Costumo dizer que esta é a atual máquina do crescimento urbano
e ela está muito articulada. Com a aproximação dos megaeventos, essa questão
está ainda mais aparente.
Rede Mobilizadores - O
que um bom projeto de política urbana deve prever? O que deve ser feito de
forma emergencial para mudar as cidades brasileiras?
R.: Políticas e leis nós temos: Constituição Federal, Estatuto da Cidade,
famoso no mundo inteiro, Ministério das Cidades, Conferência Nacional das
Cidades, Conselho das Cidades, Lei Federal de Consórcios Públicos, Plano
Nacional de Habitação, Lei Federal de Saneamento, Política Nacional de Resíduos
Sólidos e por último, o Plano Nacional de Mobilidade Urbana. Porém, precisamos
de mais ação por parte do governo para o cumprimento e fiscalização das regras.
É importante ressaltar
que houve distribuição de renda nos últimos anos e foi possível para uma
parcela considerável da população ter acesso a bens antes restritos. Também voltamos
a investir em políticas públicas, mas o direito à cidade como um todo depende
de uma política urbana de estruturação, que democratize, principalmente, o uso
e a ocupação do solo.
No entanto, o que
considero mais emergencial nesse momento é a questão da mobilidade urbana, como
os movimentos recentes deixaram bem claro. Temos que priorizar o transporte
coletivo e penalizar o automóvel.
Rede Mobilizadores - Quais
as consequências do estresse urbano nas populações das cidades brasileiras?
R.: De acordo com o Instituto Saúde e Sustentabilidade, coordenado pelo
médico Paulo Saldiva, 30% da população de São Paulo sofre de depressão,
ansiedade mórbida ou comportamento impulsivo. Segundo a Organização Mundial da
Saúde, entre 24 metrópoles do mundo, São Paulo apresenta o pior quadro. Veja
que 29,6% dos indivíduos da região metropolitana apresentaram transtornos
mentais nos doze meses anteriores à pesquisa. A ansiedade afetou 19,9% dos
entrevistados. Em seguida transtorno de comportamento e de impulso. Claro que o
trânsito tem a ver com isso.
Dois grupos se mostram
especialmente afetados: as mulheres que moram em regiões consideradas de grande
vulnerabilidade apresentam transtorno de humor, assim como os homens migrantes
que moram nessas regiões precárias. Dessas mulheres, 30% são chefes de família.
Elas saem para trabalhar e deixam os filhos, que por sua vez ficam sem acesso a
esporte, lazer, educação, porque não estão na escola. A mãe não consegue
acompanhar. E aí tem a violência policial e o tráfico.
Rede Mobilizadores - O
que tem sido feito em termos de políticas públicas voltadas às áreas
periféricas e às favelas? Existem políticas bem sucedidas na integração da
chamada cidade ilegal à cidade legal? Como deve ser esse processo de
integração?
R.: No Rio de Janeiro, em especial, tivemos um programa de urbanização
muito interessante que foi o Favela Bairro, que levou equipamentos e serviços
públicos para dentro das favelas. Em São Paulo, a pavimentação e a instalação
de equipamentos de educação foram uma das coisas mais revolucionárias
realizadas na gestão de Marta Suplicy: foram construídos teatro, cinema,
espaços para natação, dança, arte, esporte. O trabalho, do qual fiz parte,
ficou conhecido no mundo por causa da arquitetura de habitações, pelo know how
de urbanização de favelas.
Nos últimos dez anos,
houve um retorno do investimento em saneamento, habitação, obras de
infraestrutura urbana com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e o
programa Minha Casa, Minha Vida. No entanto, como a recuperação do investimento
se dá sem a reforma urbana, que tem como ponto central a questão fundiária e
imobiliária, ela acontece, no mínimo, de forma desordenada.
A apropriação,
principalmente da renda imobiliária e fundiária, se dá por interesses privados
e com aumento do preço do metro quadrado dos imóveis, que em três anos chegou a
151%, em São Paulo, e 185%, no Rio de Janeiro. De 2009 a 2012, houve uma
explosão no Brasil inteiro do preço do metro quadrado, com despejos violentos.
Rede Mobilizadores - Quais
os impactos dos megaeventos, como Copa do Mundo e Olimpíadas, nas cidades?
R.: Costumo dizer que é uma crueldade o que estão fazendo com a população
brasileira que mora nas cidades que sediarão os jogos da Copa do Mundo. O
capital imobiliário disputa a semiperiferia e os pobres estão indo para mais
longe. Temos uma reestruturação da ocupação metropolitana e urbana no Brasil a
partir da especulação imobiliária sem controle fundiário e, finalmente,
empresas de construção pesada decidindo o que priorizar. Não existe uma
discussão em torno da necessidade da obra, se ela é prioridade ou não, se está
no Plano Diretor ou não, tanto faz. O comportamento especulativo e o viés
patrimonialista têm sido predominantes.
Onde há maior
arbitrariedade de intervenção na cidade é no Rio de Janeiro. Estão fazendo com
que a população pobre saia do Centro e vá para o fim do mundo. A área
portuária, em especial, sofre uma supervalorização.
Rede Mobilizadores - Como
os cidadãos podem participar do planejamento das cidades?
R.: O que costumo dizer é que não nos falta conhecimento técnico, nem
expertise para saber o que fazer com relação ao planejamento das cidades. Acho
que o que falta é o enfrentamento aos interesses do grande capital que aí
estão. Acho que ir para as ruas manifestar indignação é uma forma de
participação. Depois das manifestações de junho, a pauta é a política de
transporte coletivo no país.
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Entrevista para o Eixo de Participação,
Direitos e Cidadania
Concedida à: Flávia Machado
Editada por: Eliane Araujo.
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